Fogueiras da Razão
06/09/2014 02h00
Política,
ao menos na democracia, é diálogo. A condição para o diálogo é a disposição
genuína de ouvir –isto é, de mudar de ideia. O fanático não dialoga, prega.
Ele pretende converter o interlocutor, mas não contempla a hipótese de
rever suas próprias convicções. No fundo, almeja um poder absoluto: moldar
o outro segundo o figurino de crenças que selecionou como verdadeiro. O
artigo "Desvendando Marina", de Rogério Cezar de Cerqueira Leite
(Folha, 31/8), não desvenda a candidata do PSB/Rede, mas atesta a
virulência antidemocrática dos fanáticos da Razão.
O
articulista classifica Marina Silva como uma fundamentalista cristã. No
universo da ciência política, o conceito de fundamentalismo religioso
aplica-se às correntes que exigem a subordinação das instituições públicas
e da vida civil aos dogmas de uma fé. Os fundamentalistas querem substituir
o livro das leis (o contrato constitucional) pela Lei do Livro (a Bíblia, o
Corão ou a Torá). Marina não é, portanto, uma fundamentalista –e, assim
como a teoria da evolução, tal conclusão não é uma questão de opinião.
O
pensamento científico assenta-se sobre modelos e evidências, abrindo-se ao
teste da falseabilidade. Do alto de uma torre erguida com a argamassa da
arrogância, o fanático da Razão viola as regras que simula seguir, operando
por espasmos de subjetividade. Cerqueira Leite escandaliza-se com as
"crenças íntimas" de Marina, mas nem tenta apontar nas propostas
políticas da candidata alguma contaminação fundamentalista. Marina defende
a laicidade do Estado, sugere submeter o tema do aborto a plebiscito e
alinha-se com a decisão do STF sobre a união civil de homossexuais. São
posições semelhantes às de Dilma e Aécio, que também não reproduzem o
catecismo do movimento LGBT. No fim, o "desconforto" do
Inquisidor da Razão é com a liberdade de religião.
As
grandes fogueiras da Igreja apagaram-se no passado, ainda que suas brasas
continuem queimando aqui e ali. No Ocidente, as fogueiras do último século
foram acesas por Estados totalitários que falavam a linguagem da Razão. A
URSS de Stálin e a China de Mao eliminaram milhões de pessoas em nome da
Ciência da História, que decifrara o enigma do futuro da humanidade. A
Alemanha de Hitler construiu as engrenagens do exterminismo sobre o
alicerce da Ciência da Raça, que prometia a salvação nacional no Reich de
mil anos. O fanático da Razão, tanto quanto o da religião, quer um governo
que administre as almas, não as coisas. Na democracia, contudo, as almas
não fazem parte da esfera de autoridade do Estado.
A
pecha de fundamentalista religiosa lançada contra Marina circula no
submundo da internet, propagada por blogueiros governistas sustentados por
patrocínios de empresas estatais. Simultaneamente, e de acordo com uma
calculada lógica da duplicidade, o governo ensaia reativar um projeto de
lei que concede benefícios tributários às igrejas. Mas o Inquisidor da
Razão parece não sentir "desconforto" com a privatização
partidária da máquina pública nem com a transgressão do princípio elementar
da separação entre Estado e religião. Ele se incomoda, de fato, com
"crenças íntimas".
Sou
agnóstico. Acho graça nos mitos religiosos da Criação –e aborreço-me com
pregadores que têm a exagerada pretensão de retificar minhas "crenças
íntimas". Só existem superficiais diferenças de linguagem entre eles e
os intragáveis pregadores do ateísmo, que querem matar Deus, erradicando-o
da mente dos seres humanos. Uns e outros sonham com
um Estado inquisitorial, aparelhado para desentranhar as "ideias
daninhas" que envenenam seus concidadãos.
Marina
já não é uma esfinge. A candidata divulgou um extenso programa de governo,
atravessado por tensões e não isento de contradições. Melhor criticá-lo que
acender uma fogueira com os galhos secos da árvore da intolerância.
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