Cidadania no Brasil - O longo caminho. (resumo da obra)

Cidadania no Brasil: Direitos Civis Retardatários

Os direitos civis estabelecidos antes do regime militar foram recuperados após 1985, como a liberdade de expressão, de imprensa e de organização. A Constituição de 1988 ainda inovou criando o direito de habeas data, em virtude do qual qualquer pessoa pode exigir do governo acesso às informações existentes sobre ela nos registros públicos, mesmo as de caráter confidencial. Criou ainda o “mandado de injunção”, pelo qual se pode recorrer à justiça para exigir o cumprimento de dispositivos constitucionais ainda não regulamentados. Definiu também o racismo como crime inafiançável e imprescritível e a tortura como crime inafiançável e não-anistiável. A Constituição ordenou também que o Estado protegesse o consumidor, dispositivo que foi regulamentado na Lei de Defesa do Consumidor, de 1990.
Essas inovações legais e institucionais foram importantes, e algumas já dão resultado. No entanto, pode-se dizer que, dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu conhecimento, extensão e garantias. A precariedade do conhecimento dos direitos civis, e também dos políticos e sociais, é demonstrada por pesquisa feita na região metropolitana do Rio de Janeiro em 1997, a qual mostrou que quase a metade dos pesquisados achava que era legal a prisão por simples suspeita.
A falta de garantia dos direitos civis pode ser medida por pesquisas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 1988. Segundo o IBGE, nesse ano 4,7 milhões de pessoas de 18 anos ou mais envolveram-se em conflitos. Dessas, apenas 62% recorreram à justiça para resolvê-los. A maioria preferiu não fazer nada ou tentou resolvê-los por conta própria. Ao todo, 41 % das pessoas não recorreram por não crer na justiça ou por temê-la.
A falta de garantia dos direitos civis se verifica sobretudo no que se refere à segurança individual, à integridade física, ao acesso à justiça. O rápido crescimento das cidades transformou o Brasil em país predominantemente urbano em poucos anos. Em 1960, a população rural ainda superava a urbana. Em 2000, 81% da população já era urbana. Junto com a urbanização, surgiram as grandes metrópoles. Nelas, a combinação de desemprego, trabalho informal e tráfico de drogas criou um campo fértil para a proliferação da violência, sobretudo na forma de homicídios dolosos. Roubos, assaltos, balas perdidas, sequestros, assassinatos, massacres passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, trazendo a sensação de insegurança à população, sobretudo nas favelas e bairros pobres.
O problema é agravado pela inadequação dos órgãos encarregados da segurança pública para o cumprimento de sua função. As polícias militares estaduais cresceram durante a Primeira República, com a implantação do federalismo. Os grandes estados, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, fizeram delas pequenos exércitos locais, instrumentos de poder na disputa pela presidência da República. Durante o governo militar, as polícias militares foram postas sob o comando de oficiais do Exército e completou-se o processo de militarização de seu treinamento.
A Constituição de 1988 apenas transferiu para os governadores dos estados o controle direto das polícias militares. Elas permaneceram como forças auxiliares e reservas do Exército e mantiveram as características militares. O soldado da polícia é preparado para combater e destruir inimigos e não para proteger cidadãos. Mesmo a polícia civil, que não tem treinamento militarizado, se vem mostrando incapaz de agir dentro das normas de uma sociedade democrática. Continuam a surgir denúncias de prática de tortura de suspeitos dentro das delegacias. São também abundantes as denúncias de extorsão, corrupção, abuso de autoridade feitas contra policiais civis.
A população ou teme o policial, ou não lhe tem confiança. Nos grandes centros, as empresas e a classe alta cercam-se de milhares de guardas particulares para fazer o trabalho da polícia, fora do controle do poder público. A alta classe média entrincheira-se em condomínios protegidos por muros e guaritas. As favelas, com menos recursos, ficam à mercê de quadrilhas organizadas que, por ironia, se encarregam da única segurança disponível.
O Judiciário também não cumpre seu papel. O acesso à justiça é limitado a pequena parcela da população. Os poucos que dão queixa à polícia têm que enfrentar depois os custos e a demora do processo judicial. Os custos dos serviços de um bom advogado estão além da capacidade da grande maioria da população.
Uma vez instaurado o processo, há o problema da demora. Os tribunais estão sempre sobrecarregados de processos, tanto nas varas cíveis como nas criminais. O único setor do Judiciário que funciona um pouco melhor é o da justiça do trabalho. No entanto, essa justiça só funciona para os trabalhadores do mercado formal, possuidores de carteira de trabalho. Os outros, que são cada vez mais numerosos, ficam excluídos. Entende-se, então, a descrença da população na justiça.





Cidadania no Brasil: Direitos Sociais Sob Ameaça

A Constituição de 1988 ampliou, mais do que qualquer de suas antecedentes, os direitos sociais. Fixou em um salário mínimo o limite inferior para as aposentadorias e pensões e ordenou o pagamento de pensão de um salário mínimo a todos os deficientes físicos e a todos os maiores de 65 anos, independentemente de terem contribuído para a previdência. Introduziu ainda a licença-paternidade, que dá aos país cinco dias de licença do trabalho por ocasião do nascimento dos filhos.
Já os indicadores básicos de qualidade de vida passaram por lenta melhoria. A mortalidade infantil, por exemplo, caiu de 73 por mil crianças nascidas vivas em 1980 para 39,4 em 1999. O progresso mais importante se deu na área da educação fundamental, que é fator decisivo para a cidadania. O analfabetismo da população de 15 anos ou mais caiu de 25,4% em 1980 para 14,7% em 1996. O progresso se deu, no entanto, a partir de um piso muito baixo e refere-se sobretudo ao número de estudantes matriculados. Em 1997, 32% da população de 15 anos ou mais era ainda formada de analfabetos funcionais, isto é, que tinham menos de quatro anos de escolaridade.
As maiores dificuldades na área social têm a ver com a persistência das grandes desigualdades sociais que caracterizam o país desde a independência, para não mencionar o período colonial. O BRASIL era o país mais desigual do mundo em 1989, medida a desigualdade pelo índice de Gini. Em 1997, o índice permanecia inalterado (0,6).
A desigualdade é sobretudo de natureza regional e racial. Em 1997, a taxa de analfabetismo no Sudeste era de 8,6%; no Nordeste, de 29,4%. O mesmo se dá em relação à cor. O analfabetismo em 1997 era de 9,0% entre os brancos e de 22% entre negros e pardos; entre os brancos, 33,6% ganhavam até um salário mínimo; entre os negros, 58% estavam nessa situação, e 61,5 % entre os pardos. Esses exemplos poderiam ser multiplicados sem dificuldade.
A escandalosa desigualdade que concentra nas mãos de poucos a riqueza nacional tem como consequência níveis dolorosos de pobreza e miséria. Tomando-se a renda de 70 dólares – que a ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) considera ser o mínimo necessário para a sobrevivência – como a linha divisória da pobreza, o Brasil tinha, em 1997, 54% de pobres. A porcentagem correspondia a 85 milhões de pessoas, numa população total de 160 milhões. No Nordeste, a porcentagem subia para 80%. Mesmo durante o período de alto crescimento da década de 70 a desigualdade não se reduziu. Crescendo ou não, o país permanece desigual.


Cidadania no Brasil: A Expansão Final dos Direitos Políticos

A retomada da supremacia civil em 1985 se fez de maneira razoavelmente ordenada e sem retrocessos. A constituinte de 1988 redigiu e aprovou a constituição mais liberal e democrática que o país já teve, merecendo por isso o nome de CONSTITUIÇÃO CIDADÃ. Em 1989, houve a primeira eleição direta para presidente da República desde 1960. Os direitos políticos adquiriram amplitude nunca antes atingida. No entanto, a democracia política não resolveu os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento.

A EXPANSÃO FINAL DOS DIREITOS POLÍTICOS
A Nova República começou embalada pelo entusiasmo das grandes demonstrações cívicas em favor das eleições diretas. O otimismo prosseguiu na eleição de 1986 para formar a Assembleia Nacional Constituinte, a quarta da República.
A Constituição foi promulgada em 1988 e eliminou o grande obstáculo existente à universalidade do voto, tornando-o facultativo aos analfabetos. A Constituição foi também liberal no critério de idade, abaixada para 16 anos. Entre 16 e 18 anos, o exercício do direito do voto tornou-se facultativo, sendo obrigatório a partir dos 18. A única restrição que permaneceu foi a proibição do voto aos conscritos. Na eleição presidencial de 1989, votaram 72,2 milhões de eleitores; na de 1994, 77,9 milhões; na última eleição, em 1998, 83,4 milhões, correspondentes a 51 % da população, porcentagem jamais alcançada antes.
O regime militar colocava obstáculos à organização e funcionamento dos partidos políticos. Já a legislação vigente é muito pouco restritiva. O Tribunal Superior Eleitoral aceita registro provisório (o qual permite que o partido concorra às eleições e tenha acesso gratuito à televisão) de partidos com a assinatura de 30 pessoas. Foi também extinta a exigência de fidelidade partidária, isto é, o deputado ou senador não é mais obrigado a permanecer no partido sob pena de perder o mandato. Em consequência, cresceu muito o número de partidos. Em 1979, existiam dois partidos em funcionamento; em 1982, havia cinco; em 1986, houve um salto para 29, estando hoje o número em torno de 30. De um excesso de restrição passou-se a grande liberalidade.
Do ponto de vista do arranjo institucional, o problema mais sério que ainda persiste talvez seja o da distorção regional da representação parlamentar. A legislação brasileira estabelece um piso de oito e um teto de 70 deputados. Em 1994, o voto de um eleitor de Roraima valia 16 vezes o de um eleitor paulista. O desequilíbrio na representação é reforçado pelo fato de que todos os estados elegem o mesmo número de senadores. Como favorece estados de população mais rural e menos educada, a sobre-representação, além de falsear o sistema, tem sobre o Congresso um efeito conservador.
No que se refere à pratica democrática, houve frustrações mas também avanços, como o surgimento do MOVIMENTO DOS SEM TERRA (MST). Milhares de trabalhadores rurais pressionam o governo em busca de terra para cultivar e de financiamento de safras. Seus métodos, a invasão de terras públicas ou não cultivadas, tangenciam a ilegalidade, mas, tendo em vista a opressão secular de que foram vítimas e a lentidão dos governos em resolver o problema agrário, podem ser considerados legítimos. O MST é o melhor exemplo de um grupo que, utilizando-se do direito de organização, força sua entrada na arena política, contribuindo assim para a democratização do sistema.
Houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do terceiro ano do governo SARNEY, o desencanto começou a crescer. Os políticos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses.
As expectativas populares se dirigiram, então, para um dos candidatos à eleição presidencial de 1989. FERNANDO COLLOR, embora vinculado às elites políticas mais tradicionais do país, baseou sua campanha no combate aos políticos tradicionais e à corrupção do governo. O uso eficiente da televisão foi um de seus pontos fortes. Fernando Collor concorreu por um partido, o PRN, sem nenhuma representatividade, criado para apoiar sua candidatura. Mesmo depois da posse do novo presidente, esse partido tinha 5% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Era, portanto, incapaz de dar qualquer sustentação política ao presidente.
Embalado pela legitimidade do mandato popular, o presidente adotou de início medidas radicais para acabar com a inflação, reduzir o número de funcionários públicos, vender empresas estatais, abrir a economia ao mercado externo. Descobriu-se, então, que fora montado pelo tesoureiro da campanha presidencial um esquema de corrupção jamais visto nos altos escalões do governo. Milhões de dólares foram extorquidos de empresários para financiar campanhas, sustentar a família do presidente e enriquecer o pequeno grupo de seus amigos.
Humilhada e ofendida, a população que fora às ruas oito anos antes para pedir as eleições diretas repetiu a jornada para pedir o impedimento do primeiro presidente eleito pelo voto direto. Congresso abriu o processo que resultou no afastamento do presidente, dois anos e meio depois da posse, e em sua substituição pelo vice-presidente, ITAMAR FRANCO. Com exceção do Panamá, nenhum outro país presidencialista da América tinha levado antes até o fim um processo de impedimento. O fato de ele ter sido completado dentro da lei foi um avanço na prática democrática. Avanço também foram as duas eleições presidenciais seguintes. Na primeira, em 1994, foi eleito em primeiro turno o sociólogo FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. Durante seu mandato, o Congresso, sob intensa pressão do Executivo, aprovou a reeleição, que veio a beneficiar o presidente na eleição de 1998, ganha por ele também no primeiro turno.


Cidadania no Brasil: Conclusão
A Cidadania na Encruzilhada

Percorremos 178 anos de história do esforço para construir o cidadão brasileiro. Chegamos ao final da jornada com a sensação desconfortável de incompletude. O triunfalismo exibido nas celebrações oficiais dos 500 anos da conquista da terra pelos portugueses não consegue ocultar o drama dos milhões de pobres, de desempregados, de analfabetos e semianalfabetos, de vítimas da violência particular e oficial. Perdeu-se a crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade.
Uma das razões para nossas dificuldades pode ter a ver com a natureza do percurso que descrevemos. Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. Se os direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo.A ação política nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da representação. A contrapartida da valorização do Executivo é a desvalorização do Legislativo e de seus titulares, deputados e senadores. As eleições legislativas sempre despertam menor interesse do que as do Executivo. Nunca houve no Brasil reação popular contra fechamento do Congresso.
Ligada à preferência pelo Executivo está a busca por um messias político, por um salvador da pátria. Como a experiência de governo democrático tem sido curta e os problemas sociais têm se agravado, cresce a impaciência popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democrático de decisão. Daí a busca de soluções mais rápidas por meio de lideranças carismáticas e messiânicas. Pelo menos três dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular após 1945, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor, possuíam traços messiânicos. Sintomaticamente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por não se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso.
Além da cultura política estatista, ou governista, a inversão favoreceu também uma visão corporativista dos interesses coletivos. A prática política posterior à redemocratização tem revelado a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em busca de novos favores. O corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e promotores por melhores salários e contra o controle externo, e na resistência das polícias militares e civis a mudanças em sua organização.
A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. O papel dos legisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de intermediários de favores pessoais perante o Executivo.
Para muitos, o remédio estaria nas reformas políticas (eleitoral, partidária, e da forma de governo). Mas para isso a frágil democracia brasileira precisa de tempo. Sua consolidação nos países que são hoje considerados democráticos, incluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos.
Na corrida contra o tempo, há fatores positivos. Um deles é que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do valor da democracia. Os rumores de golpe, frequentes no período pós-45, já há algum tempo que não vêm perturbar a vida política nacional. Para isso tem contribuído o ambiente internacional, hoje totalmente desfavorável a golpes de Estado e governos autoritários.
Mas o cenário internacional traz também complicações para a construção da cidadania. Trata-se de um desafio à instituição do Estado-nação. A redução do papel do Estado em benefício de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos políticos. Na União Europeia, os governos nacionais perdem poder e relevância diante dos órgãos políticos e burocráticos supranacionais. Os cidadãos ficam cada vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisões políticas e econômicas são tomadas fora do âmbito nacional.
Os direitos sociais também são afetados. A exigência de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem resultado sistematicamente em cortes de benefícios e na descaracterização do estado de bem-estar. O pensamento liberal renovado volta a insistir na importância do mercado como mecanismo autorregulador da vida econômica e social e, como consequência, na redução do papel do Estado. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuíram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais etc. Assim como há enfraquecimento do poder do Estado, há fragmentação da identidade nacional. O Estado-nação se vê desafiado dos dois lados.
Não seria sensato reduzir o tradicional papel do Estado da maneira radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, por causa da longa tradição de estatismo, difícil de reverter de um dia para outro. Depois, pelo fato de que há ainda entre nós muito espaço para o aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de representação. Mas alguns aspectos das mudanças seriam benéficos. Se há algo importante a fazer em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado.
Experiências recentes sugerem otimismo ao apontarem na direção da colaboração entre sociedade e Estado. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizações não-governamentais, que desenvolvem atividades de interesse público. Da colaboração entre elas e os governos municipais, estaduais e federal, têm resultado experiências inovadoras no encaminhamento e na solução de problemas sociais, sobretudo nas áreas de educação e direitos civis. A outra mudança tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos municipaís dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento da população na formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas. A parceria aqui se dá com associações de moradores e com organizações não-governamentais. Essa aproximação mobiliza o cidadão – e o faz no nível local, onde a participação sempre foi mais frágil.
Mas há também sintomas perturbadores oriundos das mudanças trazidas pelo renascimento liberal. Refiro-me ao desenvolvimento da cultura do consumo entre a população, inclusive a mais excluída. Exemplo do fenômeno foi a invasão pacífica de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. Os sem-teto reivindicavam o direito de consumir. Não queriam ser cidadãos mas consumidores. Se o direito de comprar um telefone celular consegue silenciar ou prevenir a militância política entre os excluídos, as perspectivas de avanço democrático se veem diminuídas.
A cultura do consumo dificulta o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós, que é a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros em castas separadas pela educação, pela renda, pela cor. JOSÉ BONIFÁCIO afirmou, em representação enviada à Assembleia Constituinte de 1823, que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática. A escravidão foi abolida 65 anos após a advertência de José Bonifácio. A precária democracia de hoje não sobreviveria a espera tão longa para extirpar o câncer da desigualdade.

Bibliografia:
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


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