O NASCIMENTO DE UM CIDADÃO


Moacyr Sciliar

Para renascer, e às vezes para nascer, é preciso morrer, e ele começou
morrendo. Foi uma morte até certo ponto anunciada, precedida de uma lenta e
ignominiosa agonia. Que teve início numa Sexta-feira. O patrão chamou-o e disse, num
tom quase casual, que ele estava despedido: contenção de custos, você sabe como é, a
situação não está boa, tenho que dispensar gente.
Por mais que esperasse esse anúncio - que na verdade até tardara um pouco,
muitos outros já haviam sido postos na rua - foi um choque. Afinal, fazia cinco anos que
trabalhava na empresa. Um cargo modesto, de empacotador, mas ele nunca pretendera
mais: afinal, mal sabia ler e escrever. O salário não era grande coisa, mas permitiralhe,
com muito esforço, sustentar a família, esposa e dois filhos pequenos. Mas já não
tinha salário, não tinha emprego - não tinha nada.
Passou no departamento de pessoal, assinou os papéis que lhe apresentaram,
recebeu seu derradeiro pagamento, e, de repente, estava na rua. Uma rua movimentada,
cheia de gente apressada. Gente que vinha de lugares e que ia para outros lugares.
Gente que sabia o que fazer.
Ele, não. Ele não sabia o que fazer. Habitualmente iria para casa, contente com
a perspectiva do fim de semana, o passeio no parque com os filhos, a conversa com os
amigos. Agora, a situação era outra. Como poderia chegar a casa e contar à mulher
que estava desempregado? A mulher, que se sacrificava tanto, que fazia das tripas
coração para manter a casa funcionando? Para criar coragem, entrou num bar, pediu
um martelo de cachaça, depois outro e mais outro. A bebida não o reconfortava; ao
contrário, sentia-se cada vez pior. Sem alternativa, tomou o ônibus para o humilde
bairro em que morava.
A reação da mulher foi ainda pior do que ele esperava. Transtornada; torcia as
mãos e gritava angustiada, o que é que vamos fazer, o que é que vamos fazer. Ele tentou

encorajá-la, disse que de imediato procuraria emprego. De imediato significava,
naturalmente, segunda-feira; mas antes disto havia sábado e domingo, muitas horas
penosas que ele teria de suportar. E só havia um jeito de fazê-lo: bebendo. Passou o fim
de semana embriagado. Embriagado e brigando com a mulher.
Quando, na segunda-feira, saiu de casa para procurar trabalho, sentia-se de
antemão derrotado. Foi a outras empresas, procurou conhecidos, esteve no sindicato;
como antecipara, as respostas eram negativas. Terça foi a mesma coisa, quarta
também, e quinta, e sexta. O dinheiro esgotava-se rapidamente, tanto mais que o filho
menos, de um ano e meio, estava doente e precisava ser medicado. E assim chegou o fim
de semana. Na sexta à noite ele tomou uma decisão: não voltaria para casa.
Não tinha como fazê-lo. Não poderia ver os filhos chorando, a mulher a mirá-lo
com ar acusador. Ficou no bar até que o dono o expulsou, e depois saiu a caminhar,
cambaleante. Era muito tarde, mas ele não estava sozinho. Nas ruas havia muitos como
ele, gente que não tinha onde morar, ou que não queria um lugar para morar. Havia um
grupo deitado sob uma marquise, homens, mulheres e crianças. Perguntou se podia
ficar com eles. Ninguém lhe respondeu e ele tomou o silêncio como concordância.
Passou a noite ali, dormindo sobre jornais. Um sono inquieto, cheio de pesadelos. De
qualquer modo, clareou o dia e quando isto aconteceu ele sentiu um inexplicável alívio:
era como se tivesse ultrapassado uma barreira, como se tivesse morrido. Morrer não
lhe parecia tão ruim, muitas vezes pensara em imitar o gesto do pai que, ele ainda
criança, se atirara sob um trem. Muitas vezes pensava nesse homem, com quem nunca
tivera muito contato e imaginava-o sempre sorrindo (coisa que em realidade raramente
acontecia) e feliz. Se ele próprio não se matara, fora por causa da família: agora, que a
família era coisa do passado, nada mais o prendia à vida.
Mas também nada o empurrava para a morte. Porque, num certo sentido, era um
morto - vivo. Não tinha passado e também não tinha futuro. O futuro era uma incógnita
que não se preocupava em desvendar. Se aparecesse comida, comeria; se aparecesse
bebida, beberia, beberia (e bebida nunca faltava; comprava-a com esmolas. Quando
não tinha dinheiro sempre havia alguém para alcançar-lhe uma garrafa). Quanto ao
passado, começava a sumir na espessa névoa de um olvido que o surpreendia – como
esqueço rápido as coisas, meu Deus – mas que não recusava: ao contrário, recebia-o

como uma bênção. Como uma absolvição. A primeira coisa que esqueceu foi o rosto do
filho maior, garoto chato, sempre a reclamar, sempre a pedir coisas. Depois, foi o filho
mais novo, que também chorava muito, mas que não pedia nada – ainda não falava. Por
último, foi-se a face devastada da mulher, aquela face que um dia ele achara bela, que
lhe aquecera o coração. Junto com os rostos, foram os nomes. Não lembrava mais como
se chamavam.
E aí começou a esquecer coisas a respeito de si próprio. A empresa em que
trabalhara. O endereço da casa onde morara. A sua idade – para que precisava saber a
idade? Por fim, esqueceu o próprio nome.
Aquilo foi mais difícil. É verdade que, havia muito tempo, ninguém lhe chamava
pelo nome. Vagando de um lado para outro, de bairro em bairro, de cidade em cidade,
todos lhe eram desconhecidos e ninguém exigia apresentação. Mesmo assim foi certa
inquietação que pela primeira vez se perguntou: como é mesmo o meu nome? Tentou,
por algum tempo se lembrar. Era um nome comum, sem nenhuma peculiaridade, algo
como José da Silva (mas não era José da Silva); mas isto, ao invés de facilitar, só lhe
dificultava a tarefa. Em algum momento tivera uma carteira de identidade que sempre
carregara consigo; mas perdera esse documento. Não se preocupara – não lhe fazia
falta. Agora esquecia o nome... Ficou aborrecido, mas não por muito tempo. É alguma
doença, concluiu, e esta explicação o absolvia: um doente não é obrigado a lembrar
nada.
De qualquer modo, aquilo mexeu com ele. Pela primeira vez em muito tempo –
quanto tempo? Meses, anos? – decidiu fazer alguma coisa. Resolveu tomar um banho. O
que não era habitual em sua vida, pelo contrário: já não sabia mais há quanto tempo
não se lavava. A sujeira formava nele uma crosta – que de certo modo o protegia.
Agora, porém, trataria de lavar-se, de aparecer como fora no passado.
Conhecia um lugar, um abrigo mantido por uma ordem religiosa. Foi recebido
por um silencioso padre, que lhe deu uma toalha, um pedaço de sabão e o conduziu até
o chuveiro. Ali ficou, muito tempo, olhando a água que corria o ralo – escura no início,
depois mais clara. Fez a barba, também. E um empregado lhe cortou o cabelo, que lhe
chegara aos ombros. Enrolado na toalha, foi buscar as roupas. Surpresa:
- Joguei fora – disse o padre. – Fediam demais.

Antes que ele pudesse protestar, o padre entregou-lhe um pacote:
- Tome. É uma roupa decente.
Ele entrou no vestiário. O pacote continha cuecas, camisa, uma calça, meias,
sapatos. Tudo usado, mas em bom estado. Limpo. Ele vestiu-se, olhou no
espelho. E ficou encantado: não reconhecia o homem que via ali. Ao sair, o
padre, de trás de um balcão, interpelou-o:
- Como é mesmo o seu nome?
Ele não teve coragem de confessar que esquecera como se chamava.
- José da Silva
O padre lançou-lhe um olhar penetrante – provavelmente todos ali eram José da
Silva – mas não disse nada. Limitou-se a fazer uma anotação num grande
caderno.
Ele saiu. E sentia-se outro. Sentia-se como que – embriagado? – sim, como que
embriagado. Mas embriagado pelo céu, pela luz do sol, pelas árvores, pela
multidão que enchia as ruas. Tão arrebatado estava que, ao atravessar a
avenida, não viu o ônibus. O choque, tremendo, jogou-o à distância. Ali ficou,
imóvel, caído sobre o asfalto, as pessoas rodeando-o. Curiosamente, não tinha
dor; ao contrário, sentia-se leve, quase que como flutuando. Deve ser o banho,
pensou.
Alguém inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou:
- Como é que está, cidadão? Dá pra agüentar, cidadão?
Isso ele não sabia. Nem tinha importância. Agora sabia quem era. Era um
cidadão. Não tinha nome, mas tinha um título: cidadão. Ser cidadão era, para
ele, o começo de tudo. Ou o fim de tudo. Seus olhos se fecharam. Mas seu rosto
se abriu num sorriso. O último sorriso do desconhecido, o primeiro sorriso do
cidadão.


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